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Sobre dias de chuva, cheiro de tijolo molhado de uma casa sem reboco

Sobre dias de chuva, cheiro de tijolo molhado de uma casa sem reboco

Vinda de uma realidade humilde, encontra na união dos pais e do irmão a força de um lar sustentado pelo amor

Meu nome é Flávia, sou psicóloga e orientadora educacional no Instituto Ponte. No meu dia a dia, convivo com muitas trajetórias inspiradoras, mas algumas, de maneira sutil e marcante, atravessam a gente de um modo único… são vivências que nos moldam, que deixam lições profundas e nos ensinam mais do que qualquer manual poderia oferecer.

Ana Luíza é uma daquelas presenças suaves, que chega devagar, sem alarde, mas deixa marcas profundas. Vinda de uma realidade humilde, encontra na união dos pais e do irmão a força de um lar sustentado pelo amor e pela esperança de transformar sua realidade. E escolheu a educação para fazer essa transição.

Desde o primeiro instante em que a conheci, me tocou a forma como encara a vida: com uma leveza rara, coragem silenciosa e uma resiliência admirável. Discreta, caminha quase imperceptível… até que, convidada a falar, revela uma essência forte, batalhadora e luminosa.

Hoje, estuda em período integral na escola Leonardo da Vinci / Vitória-ES, convivendo diariamente com uma realidade social muito distante da que vive em casa. Todos os dias, por volta das quatro e meia da manhã, Ana Luíza desperta e inicia sua jornada para estudar. Essa rotina exige dela não apenas disciplina e esforço, mas uma força interior impressionante, que traduz a dimensão do seu comprometimento com os próprios sonhos.

Na escola, a aluna sente, nos detalhes, as diferenças sociais. Mas o que mais me comove não é a forma com a qual percebe essas diferenças, e sim a clareza com que ela reconhece seu lugar no mundo e a serenidade com que pensa o futuro. Ana Luíza não rejeita sua história, acolhe-a com dignidade e doçura, sabendo que cada capítulo a fortalece e lida com desafios de maneira única. 

Sempre que penso nela, ecoam as palavras de Carl Jung: “Aquilo a que você resiste, persiste. Aquilo que você aceita, se transforma.” Ela é exatamente isso: aceitação que transforma, presença que inspira! Sua presença não é a de quem chega para transformar os outros de imediato, mas a de quem transforma, silenciosamente, a si mesma — e, nesse processo, inspira quem a observa com atenção.

Em uma aula de Desenvolvimento Pessoal, motivada a pensar em uma lembrança que traz sentimento de felicidade, Ana Luíza trouxe os dias de chuva, o cheiro do tijolo molhado da casa sem reboco onde viveu. Esse aroma, tão simples e tão marcante, é para ela um símbolo de pertencimento, de memória afetiva e de resistência. A forma como ela apresentou seu sentimento demonstrou a grandeza dessa menina que sabe de onde vem e para onde deseja ir.

Para entender a alma generosa dessa aluna, basta olhar para suas raízes. Sua mãe, Sueli, é dessas mulheres raras que, mesmo após tantas privações, insiste em olhar para a vida com esperança. Ana Luíza é o espelho de um lar, onde se compartilha muito além do que se tem: solidariedade, humildade e afeto moldam essa jovem, que será, sem dúvida, uma mulher extraordinária. Na verdade, ela já tem essa luminosidade, mesmo que ainda não perceba completamente. Mostra seus encantos com uma delicadeza tímida, e uma coragem firme, sem ainda se apropriar da potência grandiosa que carrega. Costumo aprender muito com meus alunos. E com Ana Luíza, aprendo sobretudo a valorizar o essencial. Ela me ensina, que felicidade é saber reconhecer beleza nas pequenas coisas onde muitos só enxergariam falta.

Da minha mesa de trabalho, avisto diariamente com um painel onde fica registrado os escritos de Malala Yousafzai, que parecem ter sido escritas para ela: “Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo.”

Ana Luíza é exatamente isso: uma jovem em constante aprendizado, que, mesmo sem perceber, já transforma silenciosamente os espaços por onde passa, deixando marcas profundas em quem tem o privilégio de conhecê-la.

Cordialmente, Flávia Borges – Orientadora educacional do Ensino Fundamental